sexta-feira, 10 de abril de 2009

Vítimas civis da guerra


Intervenção nas situações de pós-conflito

Os psicólogos, nas zonas de guerra, tendem a focar em problemas clínicos, como o trauma. Muitas crianças, se não preenchem os critérios para uma desordem de stress pós traumático, são vítimas de guerra a precisar de assistência. Contudo, este conceito requer algum cuidado, porque tende a individualizar o problema, sendo que concentrarmo-nos nele pode patologizar uma população inteira, retratar as pessoas como vítimas e subjugar a importância das diferenças individuais. E intervenções individualizadas não são compatíveis com a orientação colectivista e de grupo da cultura angolana.

Nas questões de guerra também é necessário ter em conta as dimensões culturais, nomeadamente as conotações espirituais dadas aos fenómenos de guerra. Estas dimensões espirituais dos acontecimentos de vida negativos têm muita importância e são fonte primária de stress. Os rituais de cura próprios da cultura (angolana) costumam ser utilizados para restabelecer a harmonia espiritual e são, neste contexto, uma fonte valiosa e sustentável.
Procurar a dor do passado é um passo essencial para um futuro positivo. Para promover a cura e a esperança é essencial revitalizar as comunidades, fortalecer as tradições e construir processos de diálogo e participação.
Como existem poucos psicólogos treinados nestes contextos, a ênfase deve ser dada à construção de capacidades locais e ao crescimento, para que se possa abranger um maior número de vítimas de guerra. As intervenções que têm por base a comunidade honram os locais da sua cultura, estimulam a aprendizagem mútua e o trabalho num espírito de participação, diálogo e companheirismo.




Intervenção levada a cabo em Angola

O CCF/Angola iniciou em Setembro de 1995 um programa de treino de 3 anos que mobilizou as comunidades a promover assistência psicossocial às crianças vítimas de guerra. O programa abrangeu as 8 províncias mais afectadas pela guerra e consistiu em treinar 4.000 adultos a assistir 320.000 crianças.
A análise da situação implicou identificar as necessidades das crianças, localizar os recursos locais disponíveis para assistir as crianças e apontar as comunidades com maior necessidade de assistência.
Antes de intervir procurou-se conhecer o contexto, contactando com a população, nomeadamente com os curas. Chegou-se à conclusão que a maioria dos adultos viam a agressividade das crianças como um sinal de desobediência e não a relacionavam com as experiências de guerra e violência.
Os adultos foram seleccionados com base no seu compromisso com o bem-estar das crianças e com a sua capacidade para assistir um número significativo de crianças. Houve um esforço para que estes fossem de diferentes sectores e para que houvesse um equilíbrio entre géneros.
Primeiramente, fizeram-se seminários de treino para os adultos que incluíam os conceitos básicos de 5 áreas: desenvolvimento psicossocial das crianças, o impacto da guerra nas crianças, rituais de morte, métodos de cura, resolução não-violenta dos conflitos. As discussões sugeriram que o stress de guerra aumenta os níveis de violência familiar, pelo que é necessário trabalhar para prevenir mais incidentes de violência. Os seminários permitiam aos adultos falarem acerca das suas próprias experiências de guerra, sendo que alguns o faziam pela primeira vez.
Posteriormente, o treino com as crianças incluiu actividades de expressão artística, eventos desportivos e diálogos educacionais. Foi feita uma “ponte” com os curas tradicionais. A metodologia do desenho livre permitiu que as crianças relatassem as suas experiências de guerra. As actividades de grupo incluíram canto, dança, desportos e diálogos educacionais informais.
Fizeram-se discussões sobre as necessidades das crianças, que envolveram a comunidade, de formas que lhes facilitassem a sua identificação. Para além disso, reconhecendo a grande interligação entre o bem-estar psicossocial e o desenvolvimento económico, o grupo de trabalho ajudou a planificar e a implementar projectos em curso. Assim, as comunidades tornaram-se agentes da sua própria reconstrução.
Os seminários aumentaram a conscienciosidade acerca das necessidades psicossociais das crianças, das relações entre as experiências de guerra das crianças e o seu comportamento e de como a guerra afecta os adultos e as comunidades.
Os adultos reportaram que os seminários tinham aumentado a sua auto-estima ao validar os aspectos tradicionais da cultura que foram suprimidos durante o regime colonial.
Resumindo, a intervenção teve os seguintes impactos positivos nas crianças: melhorou as relações entre crianças-crianças e adultos-crianças, melhorou o comportamento e a cooperação na sala de aula, diminuiu comportamento de isolamento, diminuiu a frequência de jogos e brinquedos relacionados com a guerra, reduziu a violência e o comportamento agressivo entre as crianças, diminuiu os problemas de concentração, fez decrescer a hipervigilância e aumentou a comparência na escola.
Os melhores resultados foram obtidos nas comunidades que iniciaram projectos de construção, uma vez que estes ajudaram a construir um planeamento efectivo e a restabelecer um sentimento de controlo e esperança, os quais são vitais para a resiliência. Os projectos tornaram-se monumentos visíveis de “empowerment” da comunidade, de saída em relação ao passado e de eficácia na construção de um futuro.

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